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Thainá Carvalho

foto: Thainá Carvalho

- Xô, passe!

Não é que eu não goste de gatos. Pelo contrário, já tinha dois. Mas, sendo um ser humano de moral mediana, não queria que ninguém no trabalho me visse com aquela gata que apareceu por lá. Podiam deduzir que eu deveria assumir alguma responsabilidade por ela.

- Vá pra lá, vá!

Entrei no serviço e ela ficou na porta. No horário do almoço, saí pra comprar ração. Acabei esquecendo de comprar também um pote.

- Vai no chão mesmo, né, Angústias?

Pronto, já tinha dado nome à diaba da gata.

Com o passar dos dias, ela já me recebia logo que chegava. O terreno da empresa era grande, com depósitos, galpões vazios e muito lugar pra estacionar. Era eu batendo a porta do carro e ela vinha se roçar nos meus pés, pedindo comida (ou talvez demonstrando já um amorzinho, não sei)

- Espere, primeiro tenho que bater o ponto.

Em coisa de semanas, notei os calombos na barriga. Ela acabou parindo no fundo de uma pilha de pneus, em um dos galpões abertos, e meu alívio foi imenso quando vi apenas dois filhotes. Eu e mais alguns colegas, que gostavam de bichos, nos revezamos nos cuidados (não muitos porque Angústias era uma ótima mãe, não venho aqui julgar de forma tóxica a maternidade dos outros). Na verdade, acabamos atrapalhando quando, eventualmente, alguém desfez a pilha de pneus, deixando a jovem família aninhada em um paninho.

A surpresa veio no dia seguinte: ninguém me recebeu quando cheguei. Como alguns colegas mais desalmados já haviam ameaçado envenenamento, corri nervosa até o local onde ela ficava e o que encontrei foi uma verdadeira cena de batalha. Penas espalhadas, sangue seco no piso de cimento, o paninho já nem sei onde. Desesperada e com lágrimas nos olhos, comecei a revirar todo o galpão atrás dos meus gatos (isso, em algum momento, já tinham virado meus). Não demorou cinco minutos e Angústias apareceu, miando com tranquilidade, e saiu andando, explicando o que havia acontecido:

- Amiga, nem te conto. Veio um pássaro enorme sei lá da onde no meio da madrugada e eu fiquei tipo e agora meus bebês, né? Eles começaram a gritar desesperados, e o bicho vindo e eu vi que não ia ter jeito, taquei-lhe uma patada na cara, aí ele veio com bico e tudo, arrancou um tampo da minha cabeça, repare aqui. Aí eu e é? Foi outra chapuletada na cara dele, essa tirou sangue que eu vi, ele ficou azedo, mas minha garra é poderosa, você nem sabe. Sei que rolamos pra lá e pra cá e eu com um olho o tempo todo nos guri, aquela bagaçada, e aí VRAU, dei no olho e o vagabundo foi embora, não quis mais conversa. Bem, mas aí não podia mais ficar lá né, não tava bom depois que tiraram meus pneus, o que vocês pensam hein? Se eu pari na desgraça do fundo dos pneu é porque era seguro né, vocês têm mania de mexer em tudo. Pois vim pra esse canto aqui, que tem tipo um cercado de arame, quero ver vocês mexerem agora.

Sorri, aliviada em ver os dois gatinhos dormindo em seu novo canto, como se nada tivesse acontecido. De fato, a história parecia plausível. Há muitos gaviões nas proximidades da firma, que fica do lado de alguns terrenos baldios na saída da cidade.

Meses depois, consegui adoção para os filhotes e trouxe Angústias pra casa. Eventualmente, descobri que ela tem um bafo horrível e ocupa ¼ da cama quando dormimos. Sei que lembrei dessa história toda porque em um desses dias de brigas domésticas agravadas pelo confinamento, com portas batendo e gritos voando, percebi que não tinha metade da garra de Angústias.

Obs.: Sério que você vai comprar um gato ou um cachorro, quando você pode adotar?

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Thainá Carvalho

Flor de sal

(Foto: Carlos Figueiredo)

Fazem exatos 90 dias que não molho meus pés nas águas do mar. Apesar de morar em uma cidade litorânea, pertenço ao grupo de risco, assim como meus parceiros de quarentena. Penso em todas as pessoas que insistem em ir à praia nesses tempos de isolamento social tão necessário e as ondas me parecem um luxo.

Quando recebi o livro Flor de Sal, escrito por Mell Renault e publicado esse ano pela Editora Penalux, senti uma gratidão imensa pelo mar enviado. A obra, composta por 49 poesias, é uma declaração de amor ao oceano e exibe todas as suas belezas, desde a “memória da água” (poema Vestígios), passando pelo seu “pássaro de espuma” (Nascente) até o “deserto de sal” (Ondina). Cito essas expressões específicas para mostrar a força das metáforas da escritora, que criam um mar para cada leitor. O meu faz-se de saudades, onde “há um silêncio / de mil âncoras / afundadas / e esquecidas.” (Beira-mar).

Esse mundo azul foi tema para a poesia desde séculos imemoriáveis – os portugueses que o digam. Junto com Camões e Sophia de Mello Breyner, Mell Renault entra no coro de vozes que cantam o mar, mas não se preocupe: o lirismo das poesias de Flor de Sal não é óbvio e os versos não são esperados. Leia tranquilo e garanto que uma brisa de água salgada vai te surpreender entre as quatro paredes da sua sala. Claro que sou parcial para falar, afinal já fiz uma resenha elogiosa de outro livro da escritora, Patuá. Enquanto as poesias deste mostram um alter-ego que pisa firme sobre a terra ainda verde, a poeta de Flor de Sal se deixa levar pelas ondas, com o coração “essa secreta ilha / carregada / pela água primitiva” (Atol).

Percebi, em Flor de Sal, que Mell Renault escreveu um sentir-saber do mar, esse “sangue memoriado / de azul / tempo suspenso / proas / naus / silêncios a banhar o mundo” (Anil). Soube e senti em cada verso a intimidade da escritora com todas as gotas de água salgada que existem no mundo. Li cada página com saudades dos dias futuros em que mergulharei nas ondas para ser o oceano que Mell me deu.

 

Você pode adquirir o livro diretamente com a escritora aqui ou no site da editora Penalux

 

Mell Renault é escritora e dramaturga. Mineira de BH, tem 35 anos e manteve o blog Pensamento Polaroid, que se tornou um fanzine de incentivo à leitura, sendo conhecido no Brasil e no exterior como o único fanzine literário no mundo com um trabalho completamente manual - desde a capa até os textos. Já publicou nas revistas Alagunas, Mallarmargens, Diversos Afins e é colaboradora da revista InComunidade (Portugal). Lançou em 2019 seu livro de poema Patuá (Coralina) e agora em 2020 lança o Flor de Sal (Penalux).

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Thainá Carvalho

Carta enviada pelo amigo escritor Thiago Medeiros,

junto com um livro de Andrea Ferraz, presente tão necessário nesses tempos.

Pensei muito antes de escrever essa crônica. Não sabia bem como abordar esses tempos.

Considerei escrever algo leve para desanuviar, mas não leve demais porque, afinal, há pessoas sofrendo.

Depois comecei a desenvolver um texto sobre a pandemia em si, mas falar o que além de tudo o que já foi dito e calado?

Aliás, falar o que? Como? O que exatamente se espera de nós, escritores?

Há alguns dias, recebi uma carta do amigo escritor Thiago Medeiros, parte da ação Cartas de um lugar que não escolhi. Escrita em “14 de maio de um ano que não se deixou existir”, ela se desenha com carinho para a parte em que meu colega diz:

“Ainda assim, somos sobrados e cobradas para escrever. Escuto essa pergunta quase todos os dias. Tem escrito algo sobre isso que está acontecendo? Não sei bem o que o mundo vê em nós, escritores e escritoras. A romantização das nossas figuras. Homens e mulheres a postos sempre para engolir o mundo e devolvê-lo em lirismo, qualquer que seja ele”

A arte está sendo cobrada e vem se cobrando como o grande remédio para a sanidade mental das pessoas. Em tempos normais, somos apenas o escritor que vende o livro independente por um valor muito alto, ou o artista que deveria estar trabalhando ao invés de pintar quadros. Agora, de repente, temos que ser os bastiões da resistência – nossa e dos outros.

Recentemente, editei um texto da ilustradora Tamiles Doralício para a Revista Desvario. Ela menciona a produtividade forçada que precisamos apresentar, especialmente os artistas. Nós temos que aproveitar essa “janela de oportunidade”, esses olhos entediados que podem prestar atenção a alguma arte exibida em seus feeds. Nas redes sociais, a pressão é cruel. Agora é a hora de escrever cem laudas por dia, de destruir as costas pintando quadros no chão, de cegar-se desenvolvendo ilustrações no computador. Vamos! Temos que produzir, temos que curar a ansiedade, embelezar um mundo que morre, é nossa obrigação, é nossa hora, é nosso like.

Esquecemos que essa é apenas nossa hora de sobreviver. Mas como falar isso?

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