(colagem: Thainá Carvalho)
Fiquei abismada quando descobri que minha avó não sabia ler. Eu devia ter uns 10 anos na época, e ela, todos os anos do mundo. Tinha esses olhos bem apertadinhos, meio escondidos sob um tantão de rugas, e um pano que ela amarrava na cabeça, Deus sabe pra que. Passava o dia sentada no sofá, de frente pra uma televisão que só era ligada na hora da missa. No resto do tempo, cantarolava sozinha ou fumava um cachimbo comprido, Deus sabe com o que. Eu a visitava aleatoriamente, já que ela morava no andar de baixo da casa.
- Mas você não sabe ler?
E ela ria, como quem não tinha nada demais. Minha avó também não ia a médicos, almoçava diariamente carne frita com farinha (eu me babava toda com aquele caldinho gorduroso que ela me dava escondido) e criava uma quantidade pouco agradável de rolinhas em gaiolas no quintal. Mas não ler? Nem escrever? Era o cúmulo.
- Vou ensinar você a ler.
Até hoje amo essa adrenalina despertada por uma boa ideia que provavelmente vai dar errado. Só sei que subi correndo as escadas para encontrar alguns cadernos antigos de caligrafia NAQUELE INSTANTE porque se não os encontrasse ALI E AGORA minha avó iria morrer sem ler. Minha mãe, familiarizada com minhas urgências, me deu um safanão e disse que os procuraria no fim de semana. Foram três dias de desespero e angústia até que ela me entregasse os malditos cadernos.
- Dona Joana, vou te ensinar a ler e escrever hoje!
Não a chamava de vó, não sei bem o porquê. Mas lembro de passar os dedos magrinhos dela pelas sílabas va, ve, vi, vo, vu e mostrar a ela a separação da palavra ne-ta. Não a ensinei a ler em um dia, nem em dois, nem em vinte. Eu, criança, tinha muitos compromissos e menos foco nos projetos de longo prazo. Foi mais de mês até ela conseguir escrever seu primeiro nome, com minha mão sobre a dela e a letra mais feia de todas. Nesse dia, ela riu como um passarinho que saísse da gaiola.
Eventualmente, fui perdendo a paciência com a capacidade de minha avó não ir muito além de ler o próprio nome. Claro que em nenhum momento me passou pela cabeça que eu poderia ser uma péssima professora. Fui deixando de lado as aulas diárias, as visitas, a carne frita e os dentes de leite (era ela que os arrancava com um barbante e a firmeza dos braços finos). É, acabei não sendo uma neta ideal no restinho de vida que faltava à minha vó, mas gosto de fingir que a libertei pela breve palavra escrita e, nas lembranças, confundo o som de sua voz com o barulho das rolinhas voando.
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