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  • Thainá Carvalho

A valsa de Zelda Fitzgerald ou Para todos aqueles que me lerão daqui a 81 anos


As horas versam mais sobre sensações compartilhadas e menos sobre séculos

 

Esse não é um elogio aos sucessos literários alimentados pelas grandes lendas burguesas de doenças incuráveis e alcoolismo. Esse também não é um textão sobre a hipótese de um macho escroto ter limitado a mulher que poderia ser brilhante. Esse é um ensaio sobre o tempo que passa, mas não se perde.

Em setembro de 1937, Zelda Fitzgerald escreveu para seu marido, Scott:

“Obrigada pela excelente viagem: foi muito bom rodar por aquelas longas estradas tristonhas, parando para comprar coisas que no fundo não são necessárias, foi bom chegar à noite cheirando a poeira dócil e a gasolina e reaver a sensação de nunca se ter certeza exata do lugar onde estamos”

Eu, 81 anos e 7 meses depois, sinto exatamente isso ao chegar de uma viagem. Quando Zelda retornou da sua, ela tinha 37 anos, uma filha, um marido alcoólatra, e já havia sido internada três vezes por colapsos nervosos, indícios não confirmados de uma esquizofrenia. Ela viveu a Era do jazz em sua essência e, em 1932, escreveu Essa Valsa é Minha, um romance com cheirinho autobiográfico. A minha vida e a de Zelda são completamente diferentes, mas sua escrita única nos identificou de uma forma tão específica, que chego a ouvir sua valsa dançando conforme o tempo. E eu sou apenas uma dentre tantos leitores que criam continuamente suas próprias conexões com ela.

Curiosamente, Zelda achava que não sabia escrever. Sério mesmo. A pessoa que escreveu o seguinte trecho em uma carta de novembro de 1931:

“É tão triste ver suas roupas empoeirando nos cabides. D. O., se você voltar, eu farei o jasmim florescer e todas as outras árvores darem flor, e nós comeremos nuvens de sobremesa , tomaremos banho de espuma da chuva – deixo você brincar com a minha pistola e ganhar todas as partidas de golfe, e com as hortênsias azuis farei para você um terno novo, das cascas de pecã um par de sapatos, hei de lhe costurar um cinto de folhas como se fossem mapas do mundo e você poderá continuar para sempre sendo aquele que é perfeito”

E esse outro, em dezembro do mesmo ano:

“Adoro subir no telhado de zinco, empunhando minha pistola vazia, e gritar “Quem está aí?” como se estivesse cercada por uma multidão. Mas eu sou, secretamente, o criminoso fugitivo, sempre serei.”

Foi a mesma que não ousava ler o próprio conto porque “não é de primeira linha e não quero me sentir desencorajada”. É compreensível que ela se sentisse assim quando seu marido já havia publicado Belos e Malditos e o Grande Gatsby, dois clássicos da literatura norte-americana. Inclusive, Zelda pediu a Scott: “Seria tão bom se você pudesse me ensinar a escrever”.

Aqui, identifico-me um pouco com ela também. Mal percebo o momento em que minha autocrítica se transforma em autodepreciação e, mesmo que notasse, talvez não fosse capaz de evitá-lo. Mais uma vez, uma linha tênue, escrita há décadas por Zelda, cria um laço. Com ele, não me sinto sozinha no espaço e me encontro no tempo – o mesmo para mim e para ela, pois as horas versam mais sobre sensações compartilhadas e menos sobre séculos.

É a compreensão de coisinhas tão simples que tornam o escrever um ato necessário para preservar a imortalidade dos sentimentos, como eu já havia alardeado em outro ensaio, e como Zelda tão bem colocou ao escrever para seu marido: nada sobreviveria a nossa vida.

*Recomendação: Querido Scott, Querida Zelda: as Cartas de smor de Scott e Zelda Fitzgerald – / Organização Jackson B. Ryer e Cathy W. Barks; tradução Beth Vieira. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005

as horas versam mais sobre sensações compartilhadas e menos sobre séculos.

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