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  • Thainá Carvalho

Política


Desses contos e casos de histórias reais

 

Entrou no quarto devagar. Achava que se entrasse assim era como se não tivesse entrado, como se pudesse voltar atrás. Não podia. Já estava ali, já pegara dois ônibus, já dissera a sua mãe que viria e já brigara com a irmã que não viria. Agora era tarde. O cheiro de hospital já impregnava suas roupas e a enfermeira já tinha perguntado qual a sua relação com o paciente.

- Sou filha.

Achou estranho quando falou e quis retirar. Quis xingar a enfermeira por fazer uma pergunta tão íntima, tão sem cabimento. Ela não queria ser filha desse merda. Estava ali porque sua mãe dissera que era seu dever. Mentira. Estava ali porque queria estar, porque queria olhar pra ele e confirmar que ele já não era mais seu pai mesmo. É possível deixar de ser filha?

O quarto era muito branco e muito comum. Ele parecia ordinário, dormindo afundado nos travesseiros meio amarelados. Ela podia escutar o barulho da sua respiração pesada de bêbado, de bruto. Até gostaria de dizer que tudo começou com a bebida, mas seria fácil demais, clichê demais. Ele já era bicho ruim desde muito tempo antes. Ela queria bater nele como ele batera em sua mãe, queria arranhar suas bochechas brilhantes de suor, arrancar sangue dos olhos remelentos. Não pôde. Sentia nojo e sentia pena e sentia raiva. Travada de tanto sentir, apenas teve forças para ouvir o apito tedioso dos aparelhos do hospital. Odiava o tédio, o sinal de parar, as listas de prós e contras. Se pudesse, sairia correndo para dançar no meio da rua, uma música de mágoa que a fizesse se mexer e gritar com o corpo tudo o que não conseguia dizer ao pai. E por que não podia fazer isso? Devia mesmo alguma coisa a ele só porque nem todas as lembranças que ele havia deixado eram ruins?

- É seu dever ajudar seu pai.

Pensou que a mãe era louca quando disse isso. Eu não vou ajudar ninguém ele não merece nada de mim nem de você que é louca não é porque ele está morrendo que eu vou esquecer tudo o que ele fez eu não vou perdoar eu não vou lá você é louca e ele já tentou te matar como pode me pedir uma coisa dessas o que se passa na sua cabeça me pedir pra ajudar um cara que tentou te matar duas vezes e quase conseguiu nós não devemos nada a ele que é um sádico um escroto um covarde que não soube viver a vida e não deixou que vivêssemos as nossas em paz eu não vou lá no hospital os parentes estúpidos e interesseiros dele que vão e cuidem daquele lixo.

- Tá, eu vou lá de tarde.

Foi tudo o que conseguiu dizer. Gostava de imaginar o que aconteceria se algum estranho na rua perguntasse a ela se estava tudo bem. Ela precisava desabar em ombros desconhecidos e responder tanta coisa, contar tanta raiva. Ao invés disso, perguntava aos outros como eles estavam e ouvia e ajudava porque viver dos outros era melhor que viver de si mesma. Talvez fosse sádica igual ao pai. Gostava de sorrir em meio a tanta tragédia alheia. Quanto mais sorria, mais se achava forte. Não queria briga, nem confronto, nem bebida. Tinha tudo isso em casa até o dia em que ele simplesmente desistiu, não voltou mais. Ninguém buscou explicação. Quando uma coisa muito boa acontece, a gente só levanta a mão pro céu e agradece. Foi como se um grande peso tivesse sido tirado das costas dela e da irmã. Ela se sentia culpada pelos erros do pai. Era isso que não dava pra perdoar, esse gosto de culpa que ele deixara.

No corredor do hospital, passou um grupo agitado de enfermeiras barulhentas. Ele se mexeu na cama, mas pareceu não acordar. Ainda bem porque ela não estava pronta. Nunca ficaria porque precisava de amor. Ela se odiava por nunca ter feito nada para defender a mãe. Odiava-se ainda mais quando se pegava lembrando alguma coisa boa dele, era como um crime que cometia contra si mesma. Morria um pouco por dentro. Uma vez ele trouxera uma bicicleta e, meio bêbado, tirara ela da cama de madrugada para pedalar. Ela amou as luzes amarelas dos postes na rua vazia e os empurrões que o pai dava na bicicleta para que ela tomasse impulso. A mãe nem ficara sabendo disso. Também não percebia como o pai levava as filhas para a água funda quando iam para a praia. Amou e odiou o pai na ferocidade dos debates políticos domésticos.

- Você é uma pirralha, não entende nada de política.

O pai não entendia nada dela. Ela amava política. Amava o debate, os argumentos certos e errados, os xingamentos. O pai sempre fora de esquerda, figurinha de sindicato, anarquista de barba. Ela era de direita, mas lera Marx para contra-argumentar as teorias comunistas malucas que o pai soltava nas poucas vezes em que vinha jantar. Os dois se fuzilavam com os olhos, gritavam e cuspiam em cima do frango com quiabada. No final, ninguém ganhava o debate inventado e os dois se sentiam miseráveis. Ela achava que o pai era um ignorante, arrotando conhecimento que não tinha e fingindo ações que nunca teria coragem de fazer. Ele vivia no pretérito imperfeito.

- Você é um frustrado.

Foi a última coisa que dissera a ele antes de ele sumir e voltar como uma aparição, um ano depois, naquele quarto de hospital. Estava com câncer. Quando ela soube, riu. Era tudo tão ridículo, como uma peça de teatro ruim e sem sentido. Ela sufocava com a personagem e sentia-se inerte como uma plateia sonolenta. Queria movimento, mas também queria a paz de um quarto vazio, de um mosteiro no meio do nada. Fora a um lugar assim há alguns meses. Uma amiga de sua mãe a levara para passar o fim de semana em um monastério no interior. Não lembrava bem o porquê, mas achou que seria no mínimo interessante. Foi bom. À noite, as luzes amarelas iluminavam o pátio vazio e ela chorou lembrando do pai e da bicicleta. Amanheceu sentada em um banco de madeira no corredor, esperando que as luzes se apagassem e a memória morresse. Se o pai morresse, talvez ela conseguisse deixar de ser filha e seria livre. Voltou do monastério em paz, achando que tinha encontrado a solução.

Agora, morrendo, ele olhava pra ela. Ela não percebera em que momento ele havia acordado. Ela mal sabia há quanto tempo estava ali, estátua, encarando todo o passado deitado em uma cama. Os olhos dele pareciam de vidro. Ela quis abraçá-lo e quebrá-lo ao mesmo tempo, chorar como criança pequena no colo de um pai que foi de mentira. Ele não dizia nada, só a encarava com uma expressão sem limite no rosto barbado. Barba de comunista. Ela aproximou-se da cama e, só então, soube o que dizer.

- Pai, eu sou de esquerda agora.

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