Sobre como comecei a escrever no início do século XXI (e sobre como a expressão 'no início do século XXI' deixa tudo muito mais importante)
Quem me conhece mais ou menos deve andar pensando 'e eu lá sabia que ela escrevia?'. Pois é. Minha escrita sempre foi muito de mim para mim. Ao longo da vida, fui escolhendo algumas almas próximas para lerem – e elogiarem, claro – meus textos. Mas, parando para pensar, já era óbvio que eu ia desatar a escrever. Comecei nascendo difícil. Um medo de morte aqui, um sacrifício familiar ali. Foi bem complicado. E todos sabem que um drama pessoal é credencial para ser escritor.
Para completar, na quarta série, passei por um pequeno grande trauma na aula de 'criação literária'. A metodologia era curiosa. Tínhamos 20 minutos para olhar para uma sequência de 4 ou 5 quadros pendurados na parede e, daí, criar um miniconto. Uns 3 cobaias eram sorteados para apresentar – não ler - sua história para a turma. Eventualmente, as histórias eram todas iguais. Em uma sexta-feira, fui sorteada, mas um ataque de pânico me impediu de contar o que tinha escrito (uma pena, porque era muito bom). A professora me concedeu 5 minutos para não falar nada, mas bem podia ter reduzido meu sofrimento ou tentado alguma forma de incentivo, essas coisas típicas que professores fazem. Não levei zero, levei 'deficiente', uma espécie de nota muito mais grave. Passei muito tempo certa de que nasci com o defeito de não poder criar histórias.
A adolescência foi perdida em fanfics sobre autores hollywoodianos e romances bobos da Idade Média. Eu me sentia a #diferentona porque varava a noite lendo As Brumas de Avalon ao invés de ir em alguma festa ver gatinhos (isso mesmo, não era boy, não era crush: era 'gato', em português mesmo). A verdade é que eu era feia, como bem nos ensinaram as variadas comédias românticas da época. Se você usava óculos e tinha cabelo cacheado, você era feia e, consequentemente, inteligente (caso você também usasse aparelho, era só feia mesmo). As outras opções eram ser bonita e burra ou emo – uma espécie de gótico relegado ao limbo social.
A primeira dica veio quando eu tinha 14 anos. O professor de redação pediu que cada um fizesse um conto com tema livre. Escrevi besteira. Recebi nota dez e louros: sua escrita parece com a de Machado de Assis. Não parecia, mas hoje agradeço o empurrão pedagógico. O mesmo professor me colocou no rumo literário correto ao me apresentar Baleia, em plena morte, em plena prova de final de semestre. Quase choro com o texto, e respondi as questões euforicamente, apertando os olhos e as palavras para fazer caber respostas com as interpretações mais erradas possíveis sobre a escrita de Graciliano Ramos. Tirei nove. Só mais 2 pessoas da turma tiraram nota acima da média, e eu empunhei minha prova com orgulho regionalista quando saí da sala. Voltei a escrever.
Até que veio a carimbada na testa, lá pelos 17 anos: vai, Thainá, ser escritora na vida. A essa altura, minha mesada inteira ia direto para a Saraiva, e eu aguardava, com aquela velha ânsia de amante, o furgão amarelo chegar no final da tarde trazendo livros. A 'Dama do Cachorrinho e outros contos' chegou em uma dessas tardes, me trazendo Tchekhov e seu conto Angústia. O conto fala sobre um cocheiro que não tinha com quem desabafar seus problemas. A maior parte do texto chega a ser cansativa, mas suas últimas linhas me deram reticências de escritora. As tais linhas foram descritas pelo irmão de Tchekhov em uma carta enviada ao próprio autor: “eu naturalmente estou exagerando, mas nessa passagem do conto você é imortal”.
Agora, julguem-me por querer o exagero de ser imortal.